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Ainda não aprendemos que tecnologia é meio, não fim



Em maio do ano passado, a maior parte das discussões ou surpresas em torno da conexão com a educação e a tecnologia desvelava aquilo que muitos de nós, profissionais das Tecnologias da Informação e Comunicação vínhamos prenunciando. Não há como negar: o que há alguns anos já se mostrava como uma tendência, em pouco tempo, revelou-se uma necessidade.

Todos nós lembramos. Era 2020. Ontem! Do dia para a noite, nos deparamos com o fechamento físico das instituições de ensino em função da pandemia do novo e temido coronavírus. A dita Cidade Universitária, como outras tantas comunidades acadêmicas mundo afora, seus professores, escolas e universidades, impuseram-se o desafio de dar continuidade ao processo de ensino e aprendizagem. As plataformas digitais, outrora renegadas, motivo de descrença para alguns, arsenal de ferramentas que muitos se negavam a adotar, era a única forma de manter a educação pulsante.

Ao mesmo passo que o corona acelerava incontáveis inovações, a crise provocada pelo por ele, no Brasil, escancarava - e segue a fazer isso - as mazelas sociais. E o pior, sabemos: aumentando exponencialmente as desigualdades em todas as regiões, principalmente naquelas que já apresentavam um histórico de pobreza extrema. É fato: a doença atingiu em cheio a periferia do país e todo aquele universo de números, que todo dia estampa o jornal, elucidando contágio e mortes, demonstra o quanto o Brasil estava e está despreparado para conter pandemia. Há quem diga que ninguém estava preparado, afinal. Também é fato - e concreto.

A pandemia, também nesse contexto, nos mostrou muito da complexidade que envolve as tecnologias digitais. A esperança de manter, por muito, a escola viva, era ainda mais distante de quem sequer tem saneamento básico. Internet? Dispositivos móveis? Longe, muito longe. O coronavírus fez e faz a educação a distância esbarrar no desafio do acesso à internet e da inexperiência de alunos. Lá em 2019, 58% dos domicílios no Brasil não tinham acesso a computadores e 33% não contavam com internet. Entre as classes mais baixas, o acesso era ainda mais restrito. A pesquisa, à época, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), apontava que, nas áreas rurais, nem mesmo as escolas tinham acesso à rede mundial de computadores: 43% delas afirmavam que o problema era a falta de infraestrutura para o sinal chegar aos locais mais remotos.

Quando as tecnologias digitais passaram a ser utilizadas para manter atividades fundamentais à vida social, em um contexto de isolamento das populações, imagine como ficaram essas pessoas?! Frente a esse cenário, ainda urgente, o que devemos fazer? Em 2017 já publicamos artigos sobre a inclusão digital como direito fundamental passível de viabilizar a participação cidadã. Precisamos compreender que está posto. As fronteiras entre o on e offline deixam, a cada dia, de existir, e não podemos fechar os olhos aos invisíveis. Está mais do que na hora de compreendermos a influência da inclusão digital na concretização de outros direitos fundamentais e na participação cidadã sim. Além de possibilitar uma cidadania mais ativa, vigilante, pertencente, é uma ferramenta de resistência. Pode e deve ser uma arma do bem para o combate dos mais diversos tipos de exclusão

Nestor Canclini, um dos maiores investigadores em comunicação, estudos culturais e sociologia, desenvolveu, de forma interdisciplinar, o conceito de mapas de interculturalidade, a partir de uma investigação antropológica, sociológica e, justamente, dos estudos de comunicação. Contribuir para diminuir as desigualdades, conectar os excluídos, mobilizar recursos alternativos para sujeitos em situações de cidadania, ao meu ver, é uma demanda nossa. Depois que o li, nunca mais esqueci do sentido e significado ou, talvez, força, por trás do que o autor trazia: Diferentes, desiguais e desconectados. Talvez, o educar na incerteza e na urgência tenha mostrado estampada em toda parte a exclusão de ontem, a barreira do hoje e a impossibilidade do amanhã

Apesar de entendermos que existem diferentes formas pelas quais os discentes acessam os recursos tecnológicos para suas atividades acadêmicas e extracurriculares, muitos/as ainda se sentem "excluídos no interior". Entendendo que as diferenças e as desigualdades de acesso e uso existentes não só em nível local, mas também global são imensas, "enxergamos" os invisíveis, outrora já excluídos do "simples" acesso ao interior das salas de aula

Muitas escolas ainda estão se adaptando à nem tão nova realidade do ensino remoto. Temos poucas certezas frente a tudo e tanto que estamos vivendo. Mas uma coisa é absolutamente certa: a importância dos sistemas educacionais precisa ser reforçada, reinventada! Precisamos sim - e muito - de um maior investimento em infraestrutura escolar. Mas pensar que equipamentos são prioridade pode ser fatal. Webcams caras e professores sem estímulo, valorização, incentivo? Faz-se necessário notar o protagonismo do agente multiplataforma. O mais importante (e a necessidade não só urge, ganha voz diariamente) é o investimento em profissionais da educação.

Enquanto os invisíveis não têm acesso, haverá sempre algum profissional da educação, tirando do próprio bolso - ralo, insta constar - alguma, por menor que seja, oportunidade de apresentar o mundo a quem mais sonha com ele. E, sim, por incontáveis vezes, esse mundo surge por meio de uma tela. Geralmente, a do professor. Na contramão, leio: "Eu, pelo menos, só confio em educação 100% presencial para meu filho". Se seu filho tem oportunidade, não exclua você ele do presente e do futuro. Fluência tecnológica é requisito. O ano passado foi uma oportunidade, apesar da dor. Instituições capazes, de fato antenadas às necessidades dos seus alunos e ao futuro da educação, devem ter claro que o ensino presencial como vimos antes não vai voltar. Insistir nele é adquirir passaporte para o fracasso. A educação do futuro é onipresente, o ensino tem que ser focado no aprendizado do aluno. E ele quer conteúdos disponíveis onde ele estiver. Mas, sobretudo, experiências memoráveis.

Se queremos minimamente uma vaga no mercado de trabalho para os nossos filhos precisamos compreender que o ensino híbrido, parte presencial, parte a distância, com uso de tecnologia, como plataformas e aplicativos, não deve ser mais uma opção, deve ser exigência. A socialização é vital, por certo. E a possibilidade de ser parte da dinâmica de inovação do e no mundo também. O papel do professor não diminui com o uso das tecnologias, pelo contrário, assim como a importância dos médicos não diminui com a telemedicina. Precisamos ser parte da transformação e contribuir para o país poder expandir o acesso para alunos de regiões de baixa renda, que poderiam ter acesso aos mesmos conteúdos e vivências que muitas crianças privilegiadas.

O grande equívoco é pensar no que vivemos enquanto transitório. E, claro, relacionar tudo que podemos crescer ou esbarrar diretamente à tecnologia. Alteremos as lentes por um único instante e paremos de apedrejar o que os especialistas prenunciam. Com o ensino híbrido, os alunos podem ver e rever as aulas quantas vezes forem necessárias, até que entendam o conteúdo. Além disso, podem fazer pesquisas na internet além do que foi visto em aula. É preciso que as sequências digitais sejam gamificadas, que explorem outros espaços, inclusive distante da tela do computador. E não para por aí: Os estudantes tendem a ficar mais envolvidos e engajados com a variedade de materiais selecionados para um determinado conteúdo; Os professores avaliam regularmente as necessidades do aluno; E as salas de aulas, acreditem, mesmo que virtuais, são ambientes de trocas sociais, de relacionamento, cooperação, colaboração, trabalho em equipe - se e somente se, claro, utilizados os recursos devidos. E, sem sombra de dúvida, mais uma vez, valorização de pessoal. Mentoria, tutoria, monitoria. É fundamental a não sobrecarga docente e a interface com esses novos e fundamentais atores do processo educacional amparado por Tecnologias Educacionais em Rede.

Semana passada um ex-aluno, de pouco mais de 20 anos, se aventurando nos mares das startups me contou que fechou um negócio incrível. Nos EUA! Ele nunca saiu do Brasil. Só dialogou com seus novos clientes e investidores por meio da internet. Todo seu relacionamento teve desdobramentos a partir do Linkedin. Quando a situação estiver mais segura, ele vai passear por lá. O trabalho já vem andando muito bem online. Quando estava no ensino médio ele vendia rapadura no sinal para ajudar a mãe, solo, diga-se de passagem. Ele contou que, quando do recebimento de um décimo terceiro da mãe todos ficaram furiosos porque ela comprou um celular, com o máximo de funcionalidades possíveis e cabíveis dentro daquele ordenado. Foram, de fato, "incontáveis moedas contadas", nas palavras dele. Não teve ceia de Natal especial para os familiares, mas teve uma janela aberta, segundo a mãe. Em menos de um mês, o jovem listou temas de interesse e passou a consumir tudo que podia sobre. Os desconectados merecem a abertura do mundo.

Os administradores escolares não podem deixar para o ensino a demanda inteiramente. Precisam compreender que não se trata única e exclusivamente da pandemia. Ferramentas como tablets, mesas interativas, computadores, drones, realidade virtual e impressoras 3D, por exemplo, devem ser usados em instituições minimamente preocupadas em conferir a realidade mercadológica. Isso não furta nossos filhos dos pés na grama, das brincadeiras no pátio e chão da escola. Precisamos fazer esses contextos coexistirem sob pena de vê-los de fora. Não desperdicemos os momentos na escola. Gestores precisam compreender o seu papel na luta pela inclusão digital, pensar em bolsas, alternativas para a sua comunidade. E, aos que felizmente podem desfrutar do que oferecem, fazer valer a pena. A adoção do modelo de aprendizagem remota, adotado durante a pandemia, já estimulou a Educação 4.0 nos próximos anos

Vamos partir do básico: nenhum aluno seu, na retomada presencial das escolas perguntou sobre a postagem na plataforma? Atente ao sinais

Nossos filhos não cursarão faculdade do mesmo jeito que nós. Esperemos, aliás, que com as suas mais distintas oportunidades de acesso ao conhecimento, tenham oportunidades de usar, de forma inteligente, a informação. Que sejam parte de programas, projetos e iniciativas que façam compreender a força de CPFs, talvez infinitamente maior que a de CNPJs. Nossos filhos querem trabalhar por propósito. Não foram "programados" para serem reféns. Deixamos que encontrem a sua missão. Não coloquemos enquanto regra o que funcionou para imigrantes digitais como nós. Eles são nativos. O modelo de ensino tradicional já não é capaz de atraí-los. Vamos nos deparar, muito em breve, com dilemas, talvez severos, porque nossas escolas ainda não operam a coexistência. Ou é um ou é outro. 8 ou 80. A vida fora da academia não vai separar instâncias

Precisamos de interação. De salas que não sejam limitadas por um espaço físico. Depois de tudo que nossas crianças passaram, escolas privadas, com um arsenal incrível de possibilidades, chamam nossos filhos de volta, os colocam entre quatro paredes? O conteúdo está ali, a um clique na plataforma. O pátio persistiu vazio quando podiam correr, em segurança, ganhar energia para absorver aquele recurso ou objeto de aprendizagem interativo. Podiam ter externado as emoções. Feito Yoga, tranquilamente com distanciamento, por exemplo! Podem, ainda, apresentar suas percepções acerca de um livro no palco, no ginásio. Mas não. Não coexistimos. Tiraram de um isolamento e determinaram uma nova prisão.

Ainda não aprendemos que tecnologia é meio, não fim.

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